02/06/2010

Fwd: [Prof Solidários] LIVRO MONTEIRO LOBATO - VIAGEM AO CÉU



Monteiro Lobato

 

 

O SÍTIO DO

PICA-PAU AMARELO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VIAGEM AO CÉU

e

O SACI

 

 

Vol. II

 

 

Edição Integral e Ilustrada

 

 

Digitalização e Revisão

Arlindo_San

 

VIAGEM AO CÉU

 

 

I

O Mês de Abril


Era em abril, o mês do dia de anos de Pedrinho e por todos considerado o melhor mês do ano. Por quê? Porque não é frio nem quente e não é mês das águas nem de seca — tudo na conta certa! E por causa disso inventaram lá no Sítio do Pica-Pau Amarelo uma grande novidade: as férias-de-lagarto.

— Que história é essa?

Uma história muito interessante. Já que o mês de abril é o mais agradável de todos, escolheram-no para o grande "repouso anual" — o mês inteiro sem fazer nada, parados, cochilando como lagarto ao sol! Sem fazer nada é um modo de dizer, pois que eles ficavam fazendo uma coisa agradabilíssima: vivendo! Só isso. Gozando o prazer de viver...

— Sim — dizia Dona Benta — porque a maior parte da vida nós a passamos entretidos em tanta coisa, a fazer isto e aquilo, a pular daqui para ali, que não temos tempo de gozar o prazer de viver. Vamos vivendo sem prestar atenção na vida e, portanto, sem gozar o prazer de viver à moda dos lagartos. Já repararam como os lagartos ficam horas e horas imóveis ao sol, de olhos fechados, vivendo, gozando o prazer de viver — só, sem mistura?

E era muito engraçada a organização que davam ao mês de abril lá no sítio. Com antecedência resolviam todos os casos que tinham de ser resolvidos, acumulavam coisas de comer das que não precisam de fogão — queijo, fruta, biscoitos, etc, botavam um letreiro na porteira do pasto:

 

A família está ausente.

Só volta no começo de maio.

 

 

 

 

 


e depois de tudo muito bem arrumado e pensado, caíam no repouso.

Era proibido fazer qualquer coisa. Era proibido até pensar. Os cérebros tinham de ficar numa modorra gostosa. Todos vivendo — só isso! Vivendo biologicamente, como dizia o Visconde.

Mas a necessidade de agitação é muito forte nas crianças, de modo que aqueles "abris-de-lagarto" tinham duração muito curta. Para Emília, a mais irrequieta de todos, duravam no máximo dois dias. Era ela sempre o primeiro lagarto a acordar e correr para o terreiro a fim de "desenferrujar as pernas". Depois vinha fazer cócegas com uma flor de capim nas ventas de Narizinho e Pedrinho — e esses dois lagartos também se espreguiçavam e iam desenferrujar as pernas.

No abril daquele ano o Visconde não pôde tomar parte no repouso por uma razão muito séria: porque já não existia. Dele só restava um "toco", aquele toco que a boneca recolhera na praia depois do drama descrito na última parte das Reinações de Narizinho.

Mas era preciso que o Visconde existisse! O sítio ficava muito desenxabido sem ele. Todos viviam a recordá-lo com saudades, até o Burro Falante, até o Quindim. Só não se lembrava dele o Rabicó, o qual só tinha saudades das abóboras e mandiocas que por qualquer motivo não pudera comer. E como era preciso que o Visconde ressuscitasse, na segunda manhã daquele belo mês de abril, Emília, depois de um grande suspiro, resolveu ressuscita-lo.

Emília estava no repouso, como os outros, no momento em que o grande suspiro veio. Imediatamente levantou-se e foi para aquele canto da sala onde guardava os seus "bilongues1"; abriu a famosa canastrinha e de dentro tirou um embrulho em papel de seda roxo. Desfazendo o embrulho, apareceu um toco de sabugo muito feio, depenado das perninhas e braços, esverdeado de bolor. Eram os restos mortais do Visconde de Sabugosa! Emília olhou bem para aquilo, suspirou profundamente e, segurando-o como quem segura vela na procissão, foi em procura dos meninos.

Narizinho e Pedrinho estavam no pomar, debaixo dum pé de laranja-lima, apostando quem "pelava laranja sem ferir", isto é, quem tirava toda a película branca sem romper os "casulos que guardam as garrafinhas de caldo" — isto é, gomos.

— Está aqui o sagrado toco do Visconde — disse Emília, aproximando-se e sempre a segurar o pedaço de sabugo com as duas mãos. — Vou pedir a Tia Nastácia que bote as perninhas, os braços e a cabeça que faltam.

— Hoje? Que idéia! — exclamou a menina.

— Hoje, sim — afirmou Emília. — Tia Nastácia está "lagarteando", mas negra velha não tem direito de repousar.

Narizinho encarou-a com olhos de censura.

— Malvada! Quem neste sítio tem mais direito de descansar do que ela, que é justamente quem trabalha mais? Então negra velha não é gente? Coitada! Ela entrou no lagarto ontem. Espere ao menos mais uns dias.

— Não. Há de ser hoje mesmo, porque estou com um nó na garganta de tantas saudades desta peste — teimou Emília com os olhos no toco. — E fazer um Visconde novo não é nenhum trabalho para ela — é até divertimento. A diaba tem tanta prática que mesmo de olhos fechados, dormindo, arruma este.

 

 


1Emília tinha palavras especiais para tudo, que ela mesma ia inventando. As coisinhas dela, os guardadinhos, as curiosidades do seu museu, etc, eram os seus "bilongues". Talvez essa palavra viesse do inglês "belonging", que quer dizer propriedade, coisa que pertence a alguém.

E deixando os dois meninos ocupados na aposta de pelar laranjas sem feri-las, lá se dirigiu para o quarto da boa negra, com o toco seguro nas duas mãos, como um círio bento.

 

 

 

 

 

 

 

II

O Visconde Novo

 

 

Em virtude da lembrança da marquesa, a grande novidade daquele dia foi o reaparecimento do Visconde de Sabugosa.

Os leitores destas histórias devem estar lembrados do que aconteceu ao pobre sábio naquele célebre passeio ao País das Fábulas, quando o Pássaro Roca ergueu nos ares o Burro Falante e o Visconde. Os viajantes haviam se abrigado debaixo da imensa ave julgando que fosse um enormíssimo jequitibá de tronco duplo — troncos inconhos. Tudo porque o Pássaro Roca estava imóvel, dormindo de pé! Mas quando a imensa ave acordou e levantou o vôo, lá se foi pelos ares o pobre burro pendurado pelo cabresto, e agarrado ao burro, lá se foi o pobre Visconde.

Na maior das aflições, Pedrinho teve uma boa idéia: correr ao castelo próximo em procura do Barão de Munchausen. Só o barão, o melhor atirador do mundo, poderia com uma bala cortar o cabresto do burro. Pedrinho sabia que o barão já fizera uma coisa assim naquela viagem em que, alcançado pela noite num grande campo de neve, apeou-se para dormir e amarrou o cavalo a um galo de ferro que viu no chão — o único objeto que aparecia no campo de gelo. Na manha seguinte, com grande surpresa sua e de toda gente, acordou na praça pública duma cidadezinha, e erguendo os olhos viu no alto da torre da igreja, atado ao galo de ferro, o seu cavalo de sela! Compreendeu tudo. E que na véspera, quando chegou àquele ponto e parou para dormir, a neve havia coberto totalmente a cidadezinha, só deixando de fora o galo da torre da igreja... E ele então tomou da espingarda, apontou para as rédeas do cavalo pendurado e pum! cortou-as com uma bala. O cavalo caiu sem se machucar. O barão montou e lá seguiu viagem, muito contente da vida.

Ao ver o Burro Falante pendurado pelo cabresto a uma das pernas do Pássaro Roca, Pedrinho lembrou-se dessa história e correu a pedir socorro ao barão, o qual morava num castelo próximo.

O barão veio e com um tiro certeiríssimo resolveu o caso: cortou o cabresto do burro, sem ferir nem a ele nem ao Pássaro Roca. E o pobre burro, sempre com o Visconde a ele agarrado, caiu no mar, donde foi salvo por Pedrinho — mas o Visconde morreu duma vez. Emília encontrou-o lançado à praia pelas ondas, sem cartolinha na cabeça, depenado dos braços e das pernas, salgadinho, todo roído pelos peixes — e guardou aquele toco em sua canastrinha com a idéia de um dia restaurá-lo.

E esse dia afinal chegou, naquele "descanso-de-lagarto" do mês de abril. Emília lá estava no quarto de Tia Nastácia, insistindo com a boa negra.

Tia Nastácia arrenegava, dizia que era o mês do repouso, etc, etc. — mas quando Emília tinha uma coisa na cabeça era pior que sarna. Tanto amolou que a negra, depois de muito resmungo, resolveu acabar com aquilo — e o meio de acabar com aquilo era um só: satisfazer o desejo da boneca.

— Está bom, diabinha, faço, faço. Que remédio? Não sei por quem puxou esse gênio de sarna. A gente está descansando da trabalheira e a malvadinha aparece com as encomendas... Dê cá o toco

Emília entregou-lhe o toco do Visconde. A negra olhou bem para aquilo e riu-se com toda a gengivada vermelha.

— Che, não dá jeito! Isto nem toco é mais — é toco de toco. Melhor botar fora e fazer um Visconde completamente novo, dum sabugo fresco lá do paiol.

— Botar fora!... — repetiu Emília com indignação. — Fique sabendo que isto são os sagrados restos mortais do Visconde. Vou fazer um enterro, como se faz com os defuntos.

Tia Nastácia estava com preguiça de discutir.

— Pois enterre lá o seu defunto enquanto eu faço um Visconde novo — e encaminhou-se para o paiol de milho enquanto a boneca se dirigia para a horta. Por que a horta? Porque no fofo dos canteiros da horta era mais fácil abrir um buraco. E lá no canteiro das alfaces Emília enterrou os restos mortais do Visconde, pensando consigo: "Quem comer salada destas alfaces vai ficar sábio sem saber como nem por quê..."

No paiol, Tia Nastácia debulhou uma bela espiga de milho vermelho para obter um sabugo novo, e teve a luminosa idéia de deixar uma fileira de grãos, de alto a baixo, a fim de servirem de botões. Também teve a idéia de trançar as palhinhas do pescoço em forma de "barba inglesa", isto é, repartida em duas pontas. E como o sabugo era vermelho, ou ruivo, saiu um Visconde muito diferente do primeiro, que era de sabugo de milho branco.

Depois de arrumá-lo muito bem, com duas compridas pernas, dois belos braços e cartolinha nova na cabeça, foi mostrá-lo aos meninos.

Emília torceu o nariz. "Está falsificado. Não presta." Mas Pedrinho aprovou: "Está ótimo, embora pareça mais um banqueiro inglês do que um sábio da Grécia".

— E que nos adianta banqueiro aqui? — observou Narizinho. — Melhor transformá-lo em explorador africano, como aquele Doutor Livingstone de que vovó tanto fala, o tal que andou anos e anos pelo centro da África procurando as origens do Nilo. Basta trocar essa cartola por um chapéu de cortiça com fitinha pendurada e vesti-lo dum fraque de xadrez. Eu tenho um retalho que serve, daquele meu vestido de escocês.

A idéia agradou a Emília. "Sim, serve. Um explorador africano será excelente aqui — para procurar objetos perdidos. Arranjaremos diversas origens para ele procurar."

E foi desse modo que surgiu no Sítio do Pica-Pau Amarelo aquele grave personagem de fraque de xadrez, botões de milho no peito e chapéu de cortiça com fitinha caída atrás.

Mas o Doutor Livingstone veio ao mundo com um defeito: era sério demais. Não ria, não brincava — sempre pensando, pensando. Tão sério e grave que Tia Nastácia não escondia o medo que tinha dele. Não o tratava como aos demais do sítio. Só lhe dava de "senhor doutor"; e depois que Narizinho lhe disse muito em segredo que o Doutor Livingstone era protestante, a pobre preta não passava perto dele sem fazer um pelo-sinal disfarçado e murmurar baixinho: "Credo!"

— Mas será mesmo protestante, menina?

— É, sim, Nastácia. Tanto que já arranjou a bibliazinha que vive lendo.

A negra derrubou um grande beiço. Depois olhou para suas mãos cheias de calos e disse:

— Este mundo é um mistério!... Quando me lembro que estas mãos já fizeram uma bonequinha falante, e depois o tal "irmão de Pinóquio", e depois um visconde que sabia tudo e agora acaba de fazer um protestante, até sinto um frio na pacuera. Credo! Deus que me perdoe...

Na primeira semana de sua vida aconteceu com o Doutor Livingstone uma tragédia que muito consternou a todos da casa. Estava ele certa tarde lendo a sua bibliazinha no quintal, quando um frangote veio vindo. O sábio fechou a Bíblia e dirigiu algumas palavras em inglês ao frango, visto como era um frango leghorn, descendente dum galo vindo dos Estados Unidos e que, portanto, devia entender alguma coisa da língua de seus avós. O frango, porém, nada entendeu (ou fingiu que não entendeu); aproximou-se mais e mais, virando a cabecinha como fazem as aves quando descobrem petisco. É que tinha enxergado os lindos "botões" vermelhos do peito do inglês...

Do you like my buttons? — perguntou com a maior ingenuidade o sabugo, como quem diz: "Está gostando dos meus botões?" Mas em vez de responder e elogiar a beleza daqueles botões, sabem o que o frango fez? Avançou de bicadas contra o pobre sabugo e comeu-lhe cinco botões, um depois do outro! Os berros do Doutor Livingstone atraíram a atenção de Nastácia, que veio correndo com a vassoura e tocou o frango a tempo de salvar o resto dos botões. Como fossem treze, ainda ficaram oito — mas falhados. O maldito frango tinha desfeito a obra-prima de Tia Nastácia...

— Deixa estar, mal-educado! — berrou ela furiosa. — Assim que crescer mais, eu te pego e prego na caçarola — e o senhor doutor aqui há de comer a moela. Desrespeitar desse modo uma criatura de tanta sabedoria, que não faz mal a ninguém e vive quieto no seu canto lendo a sua Bíblia! É ser muito sem compreensão das coisas... Credo! — E Tia Nastácia deu um tapa na boca porque achava inconveniente pronunciar essa palavra perto dum protestante.

Desde esse dia o Doutor Livingstone ganhou um medo horrível às aves. Bastava que uma galinha cacarejasse no terreiro, ou um galo cantasse lá longe, para que o seu coraçãozinho batesse apressado, enquanto, com mãos trêmulas, ele fechava o fraque de xadrez em defesa dos oito botões restantes.

— Vejam — disse um dia Pedrinho. — Este nosso Doutor Livingstone tem cara de não ter medo de leão, nem de rinoceronte, nem de leopardo, nem de nenhuma fera africana. Mas a gente percebe que tem um medo horrível de qualquer ave das que não sejam de rapina. Sendo de rapina, isto é, das que só comem carne, ele não dá importância, nem que seja um monstruoso condor dos Andes. Mas se é ave das que comem milho, ah, o medo dele é como o de vovó com as baratas. Se vê uma galinha, empalidece; e quando um galo canta, o seu coraçãozinho pula dentro do peito como um cabritinho novo...

 


III


As Estrelas

 

Com o reaparecimento do Visconde, agora transformado em Doutor Livingstone, a vida do sítio voltou a ser a mesma de outrora. Acabaram-se os suspiros de saudades, mas o Visconde ficou sendo duas coisas: Visconde e Doutor Livingstone. Todos o tratavam ora dum jeito, ora de outro — como saía.

Numa das noites daquele mês de abril estava Dona Benta na sua cadeira de balanço, lá na varanda, com os olhos no céu cheio de estrelas. A criançada também se reunira ali. Pedrinho, de cócoras no último degrau da escada, abria com a ponta do canivete um furo no seu pião novo de brejaúva. Diante dele o Doutor Livingstone seguia o trabalho com a maior atenção.

— Vai ser uma caviúna batuta! — exclamou o menino. — Se este piãozinho não assobiar que nem um saci, perco até o meu canivete.

— Que quer dizer caviúna? — perguntou o novo Visconde.

— É por causa da cor preta — respondeu Pedrinho, — Aquela madeira caviúna, ou cabiúna, tem exatinha esta cor de brejaúva madura. Há brejaúva, ou brejaúba, lá na sua África?

— Não há coco que não haja no continente africano — respondeu o Doutor Livingstone — mas por que essa história de caviúna ou cabiúna, brejaúva ou brejaúba? Que preocupação é essa?

Pedrinho riu-se.

— É que o tal "b" e o tal "v" parecem que são uma e a mesma coisa. As palavras com "b" ou "v" ora aparecem dum jeito, ora de outro. Tudo que aqui dizemos com "b", os portugueses lá em Portugal dizem com "v", e vice-versa; e aqui mesmo há um colosso de palavras que a gente diz com "b" ou "v", à vontade — como essas duas.

Dona Benta continuava com os olhos nas estrelas. Súbito, Narizinho, que estava em outro degrau da escada fazendo tricô, deu um berro.

— Vovó, Emília está botando a língua para mim!

Mas Dona Benta não ouviu. Não tirava os olhos das estrelas. Estranhando aquilo, os meninos foram se aproximando. Ficaram também a olhar para o céu, em procura do que estava prendendo a atenção da boa velha.

— Que é, vovó, que a senhora está vendo lá em cima? Eu não estou enxergando nada — disse Pedrinho.

Dona Benta não pôde deixar de rir-se. Pôs nele os olhos, puxou-o para o seu colo e falou:

— Não está vendo nada, meu filho? Então olha para o céu estrelado e não vê nada?

— Só vejo estrelinhas — murmurou o menino.

— E acha pouco, meu filho? Você vê uma metade do universo e acha pouco? Pois saiba que os astrônomos passam a vida inteira estudando as maravilhas que há nesse céu em que você só vê estrelinhas. É que eles sabem e você não sabe. Eles sabem ler o que está escrito no céu — e você nem desconfia que haja um milhão de coisas escritas no céu...

— Desconfio sim, vovó, mas fico nisso. Sou muito bobinho ainda.

— Bobinho como todos os grandes astrônomos na sua idade, meu filho. Os maiores sábios do mundo foram bobinhos como você, quando crianças — mas ficaram sábios com a idade, o estudo e a meditação.

Narizinho interrompeu o tricô para perguntar:

— Fala-se muito em sábio aqui neste sítio, mas eu não sei, bem, bem, o que é. Conte, vovó — e retomou o tricô.

Dona Benta, quando tinha de dar uma explicação difícil, tomava um fôlego comprido, engolia em seco e às vezes até se assoprava resignadamente. Mas não falhava.

— Os sábios, menina, são os puxa-filas da humanidade. A humanidade é um rebanho imenso de carneiros tangidos pelos pastores, os quais metem a chibata nos que não andam como eles pastores querem e tosam-lhes a lã e tiram-lhes o leite, e os vão tocando para onde convém a eles pastores. E isso é assim por causa da extrema ignorância ou estupidez dos carneiros. Mas entre os carneiros às vezes aparecem alguns de mais inteligência, os quais aprendem mil coisas, adivinham outras, e depois ensinam à carneirada o que aprenderam — e desse modo vão botando um pouco de luz dentro da escuridão daquelas cabeças. São os sábios.

— E os pastores deixam, vovó, que esses sábios descarneirem a carneirada estúpida? — perguntou Pedrinho.

— Antigamente os pastores tudo faziam para manter a carneirada na doce paz da ignorância, e para isso perseguiam os sábios, matavam-nos, queimavam-nos em fogueiras — um horror, meu filho! Um dos maiores sábios do mundo foi Galileu, o inventor da luneta astronômica, graças à qual afirmou que a Terra girava em redor do Sol. Pois os pastores da época obrigaram esse carneiro sábio a engolir a sua ciência.

— Por que, vovó?

— Porque a eles pastores convinha que a Terra fosse fixa e centro do universo, com tudo girando em redor dela.

— Mas por que queriam isso?

— Para não serem desmentidos, meu filho. Como os pastores sempre haviam afirmado que era assim, se os carneiros descobrissem que não era assim, eles pastores ficariam desmoralizados.

— Ficariam com caras de grandes burros, que é o que eles são — berrou Emília indignada.

Dona Benta suspirou.

— Ah, meus filhos, eu até nem gosto de pensar no que os sábios têm sofrido pelos séculos afora... Aquela coitadinha da Hipácia, por exemplo...

— Quem era ela, vovó? — quis saber a menina.

— Hipácia foi uma sábia grega nascida em Alexandria no ano 370. Não só muito culta, como de grande beleza. O pai educou-a muito bem e depois mandou-a aperfeiçoar-se em Atenas, que era a Paris do mundo antigo. De volta a Alexandria, Hipácia abriu uma escola onde ensinava as grandes idéias de Sócrates e Platão. Tornou-se queridíssima do povo, sobre o qual derramava ondas de sabedoria. Pois sabe o que aconteceu com a coitada?

— Casou-se e... — ia dizendo a Emília, mas Narizinho tapou-lhe a boca. — Que foi, vovó?

— Mataram-na! Um grupo de capangas, instigados por um tal Bispo Grilo, atacou-a na rua, matou-a e esquartejou-a.

Os quatro coraçõezinhos ali presentes pulsaram de indignação. Dona Benta continuou:

— E a Sócrates, que foi um dos maiores iluminadores da ignorância dos carneiros, os pastores da época obrigaram-no a beber cicuta, um veneno horrível. E Giordano Bruno? Ah, este foi queimado vivo numa fogueira, no ano 1600 — sabem por quê? Porque era um verdadeiro sábio e estava iluminando demais a escuridão dos carneiros.

— Queimado vivo! — repetiu Narizinho com cara de horror. — Eu nem consigo imaginar o que isso possa ser. Outro dia queimei o dedo na chapa do fogão — e doeu tanto, tanto... Imagine-se agora uma fogueira queimando a gente inteira — a pele, os olhos, o nariz, as orelhas, as mãos, tudo, tudo... — e a menina tapou a cara como para não ver a cena.

Dona Benta deu um suspiro.

— Pois, minha filha, contam-se por centenas de milhares os mártires da fogueira, e quase sempre por isso: enxergar mais que os outros e ensinar aos ignorantes. Por felicidade minha, eu vivo neste nosso abençoado século; se eu vivesse na Idade Média, já estava assada numa boa fogueira — e também vocês, pelo crime de terem aprendido comigo muita coisa. Até Quindim ia para a fogueira como feiticeiro, se os pastores soubessem daquele passeio gramatical que ele fez com vocês.

— E o Burro Falante, vovó? — perguntou Pedrinho.

— Também ia para a fogueira, meu filho. O simples fato de o nosso bom burro falar, já seria considerado crime merece­dor de uma dúzia de fogueiras.

— E eu? — indagou a boneca.

— Você tem dito tantas heresias, Emília, que eles a queimavam numa vela até ficar reduzida a carvão, e depois moíam esse carvão e o assopravam aos ventos, de medo que a poeirinha se juntasse e vivesse outra vez.

— E hoje, vovó? — quis saber Pedrinho. — Por que é que hoje não há mais fogueiras para os sábios?

— Porque apesar de todas as perseguições os sábios foram abrindo a cabeça dos carneiros, e os carneiros já não deixam que os pastores queimem os seus mestres de ciência. Mas mesmo assim volta e meia um sábio vai para o beleléu, destruído pelos pastores. Não os queimam vivos, é verdade, mas prendem-nos em cárceres e às vezes até os fuzilam. Ou então perseguem-nos de outras maneiras, tornando-lhes a vida difícil. Em todo caso, já melhoramos bastante, e a prova temos aqui em nós mesmos: estamos vivos!


IV


O céu de noite

 

 

Estava um céu lindo, transparente como cristal. O assanhamento do brilho das estrelas parecia os olhos dos meninos quando viam a bandeja de doces que o Coronel Teodorico mandava no dia dos anos de Dona Benta. Antes de levantarem a toalha da bandeja, os olhos de todos ali no sítio ficavam como as estrelas daquela noite.

Dona Benta tomou fôlego e falou, apontando para o céu: — Olhem lá aquelas quatro formando uma cruz! É a constelação do Cruzeiro do Sul. Constelação quer dizer um grupo de estrelas. Esta constelação do Cruzeiro é a de maior importância para os povos que vivem do equador para o sul, como nós. Tem a mesma importância da célebre constelação da Ursa Maior para os povos que vivem ao norte do equador, como os europeus e norte-americanos. O Cruzeiro do Sul é o nosso relógio noturno. No dia 15 de maio de cada ano essa constelação fica bem a prumo sobre as nossas cabeças, como o sol ao meio-dia, e então sabemos que são exatamente nove horas da noite.

— Que engraçado! — exclamou Pedrinho. — Estamos em fins de abril. Logo chegaremos ao 15 de maio — e eu vou acertar o nosso relógio da sala de jantar pelo Cruzeiro do Sul. Que beleza, hein, vovó?

— Sim, meu filho. Saber é realmente uma beleza. Uma isquinha de ciência que você aprendeu e já ficou tão contente. Imagine quando virar um verdadeiro astrônomo, como o Flammarion!

— Aí, então, ele fica com cara de bobo, a rir o dia inteiro, só de gosto da ciência que tem lá por dentro — disse Emília.

Dona Benta achou graça e continuou a falar do Cruzeiro.

— As quatro estrelas do Cruzeiro — disse ela — são designadas por meio de letras gregas. Gama é a estrela do topo da cruz; alfa é a do pé da cruz; beta e delta formam os braços.

— Mas por que essas estrelas são tão importantes? — quis saber Pedrinho.

— Por causa da disposição regular em forma de cruz, dis­posição que as torna de fácil encontro no céu. Num instante a gente corre os olhos e encontra o Cruzeiro. Encontrar as outras constelações já é mais difícil — exige prática; mas o Cruzeiro até a boba da Tia Nastácia descobre no céu. Não há por aqui caboclo da roça, nem há negro da África, nem atorrante da Argentina, nem gaúcho do Uruguai, nem índio de todas as repúblicas da América do Sul, nem selvagem australiano, nem negro do Congo, Moçambique ou Hotentótia, nem bôer da Co­lônia do Cabo, nem papua da Nova Guiné, que não conheça o Cruzeiro.

— Então Robinson Crusoe também via o Cruzeiro, vovó! — lembrou Pedrinho. — A ilha dele era a de Juan Fernández, que fica ao sul do equador, perto das costas do Chile.

— Exatamente, meu filho. Quantas vezes Robinson e o seu bom índio Sexta-Feira não estiveram, como nós agora, a olhar para as quatro estrelas do Cruzeiro!...

— Estou vendo-as — disse Narizinho. — Duas estrelas maiores e duas menores... — Sim, as maiores são a alfa e a gama e são também das mais brilhantes dos céus do sul.

— E qual é a mais brilhante de todas, vovó?

— Aqui nos céus do sul é uma da constelação do Centau­ro, que fica logo ao lado do Cruzeiro.

— Qual é ela? — perguntou Pedrinho.

Dona Benta riscou o céu com o dedo, dizendo:

— Se você tirar uma linha que toque na delta e na beta do Cruzeiro e a prolongar nesta direção (e o dedo de Dona Benta ia riscando), essa linha vai encontrar duas estrelas da constelação do Centauro, justamente a alfa e a beta do Centauro — e pronto! Você terá achado a constelação do Centauro, que é das maiores dos céus do sul. E nessa constelação a estrela alfa é uma das mais conhecidas de todas. É a terceira em brilho de todo o céu e uma das mais próximas de nós.

— E aquela mancha negra que estou vendo lá? — perguntou a menina, apontando.

— Pois aquilo é o célebre Saco de Carvão da Via-láctea. Repare na beleza da Via-láctea, que fica atrás do Cruzeiro. Em certo ponto escurece. Isso quer dizer que naquele ponto há uma nebulosa escura que tapa as estrelas — e por isso recebeu o nome de Saco de Carvão.

Pedrinho não tirava os olhos das estrelas da constelação do Centauro.

— Por que, vovó, deram o nome de Centauro àquelas estrelas? Que relação há entre elas e os monstros meio cavalos e meio homens da mitologia grega?

Dona Benta assoprou.

— Ah, meu filho, os astrônomos, que são homens de mui­ta imaginação, acharam que uma linha ligando todas as estrelas desse grupo lembra a forma dum Centauro.

— Mas lembra realmente?

— Olhe e decida por si mesmo — e Dona Benta indicou as principais estrelas da constelação do Centauro. Pedrinho li­gou-as com uma linha imaginária e não viu formar-se centauro nenhum.

— Estou vendo, vovó, que os astrônomos possuem ainda mais imaginação do que a Emília...

— E assim são as linhas que você tirar de todas as outras constelações — continuou Dona Benta. — Umas dão uma vaga idéia de qualquer coisa; outras, só com muita força de imaginação lembram as coisas indicadas pelo nome. Temos ali (e o seu dedo apontava) a constelação do Pavão. E temos aquela ali que é a do Tucano... Ah, meus filhos, não há nada mais poético do que a astronomia, ou ciência dos astros! Está aí uma aventura que vocês podem realizar um dia: um passeio pelas constelações!... Que lindo! Podiam começar pela estrela Polar, que nós não vemos daqui, mas que para as criaturas humanas é a mais importante.

— Por que, vovó?

— Porque foi a bússola das mais antigas civilizações. Os egípcios, os babilônios, os chineses, os hindus, todos os velhos povos ao norte do equador, guiavam-se por essa estrela, que está sempre visível e marca o pólo. Fica bem em cima do pólo norte. E perto dela ficam duas constelações muito célebres, a Ursa Menor e a Ursa Maior.

— Por que têm esses nomes? — quis saber Narizinho.

— Porque os mais antigos astrônomos lhes deram esses nomes. Não podiam dar o nome de Tucano ou qualquer bicho das zonas quentes, próximas do equador. Deram-lhes o nome do animal que gosta de viver nos gelos — o urso polar. Por essa estrela se guiavam os navegantes do norte, no tempo em que não havia a bússola. Depois da bússola os navegantes dispensaram as estrelas — a agulhinha da bússola está sempre voltada para o norte.

— E as outras constelações?

— Ah, meu filho, há tantas... E inúmeras designadas por meio de nomes de animais, como as do Escorpião, do Leão, do Cavalo, do Carneiro, dos Peixes, do Cisne, da Lebre, da Hidra, do Corvo, do Peixe-Voador, da Abelha, da Ave-do-Paraíso, da Girafa, da Raposa, do Lagarto, da Rena, do Gato...

— E a tal Cabeleira de Berenice, que a senhora falou tanto outro dia? — quis saber Pedrinho.

— Ah, essa constelação tem um nome muito romântico. Trata-se duma história meio compridinha...

— Conte, conte — pediram todos — e Dona Benta contou a história dos cabelos da Princesa Berenice, esposa de Ptolomeu Evergete, rei do Egito.

— Este Ptolomeu — disse ela — havia partido à frente duma expedição guerreira contra a Síria; e, tomada de medo, Berenice fez à deusa Vênus a promessa de cortar a sua linda cabeleira e depositá-la no templo da deusa, caso Evergete voltasse vivo e vitorioso. Ora, o rei voltou vivo e vitorioso e a rainha cumpriu o voto: cortou os cabelos e depositou-os no templo da deusa. Mas aconteceu uma coisa inesperada: no dia seguinte a cabeleira havia desaparecido do templo!... E vai então, um astrônomo da ilha de Samos, que acabava de descobrir no céu uma nova constelação, mandou dizer ao rei que a cabeleira de Berenice estava lá: eram as sete estrelas que ele havia descoberto entre as constelações do Leão e de Arturus — e desde esse tempo o grupo das sete estrelas passou a ser conhecido sob o poético nome de Cabeleira de Berenice.

— Que lindo! — exclamou a menina. — Quando eu tiver uma gatinha, vou botar-lhe o nome de Berenice...

— Há constelações de nomes ainda mais curiosos — continuou Dona Benta — como a da Coroa, da Lira, da Flecha, do Altar, da Balança, do Relógio, do Telescópio, da Oficina Tipo­gráfica, etc. E há as de nome poético, como essa da Cabeleira de Berenice, a da Pomba de Noé, a dos Cães de Caça, a da Harpa de Jorge, a do Buril do Gravador, a do Escudo de Sobieski, a do Coração de Carlos II, a da Cabeça de Medusa, a do Homem Ajoelhado, etc. E há a de Sírio ou do Cão Maior, onde aparece a mais bela estrela do nosso céu, afastadíssima de nós. Imaginem que Sírio está a mais de 81 trilhões de quilô­metros de distância — isto é, a 540.000 vezes a distância en­tre a Terra e o Sol...

— E qual é a distância entre a Terra e o Sol?

— É de mais de 150 milhões de quilômetros. Sírio está tão longe de nós que sua luz gasta quase nove anos para chegar até aqui — e, no entanto, a velocidade da luz é uma coisa louca. Vamos ver quem sabe qual é a velocidade da luz. Eu já contei.

Pedrinho lembrava-se.

— É de 300.000 quilômetros por segundo — disse ele.

— Por segundo? — admirou-se Narizinho. — Então enquanto eu pisco os olhos a luz vai daqui até... até... Trezentos mil quilômetros é daqui até onde, vovó?

— É fora deste nosso mundinho, menina, porque você bem sabe que só com 40.000 quilômetros a gente já dá a volta em redor da Terra.

— Então quer dizer que, enquanto eu abro e fecho os olhos, a luz faz sete vezes e meia a volta da Terra?

— Isso mesmo.

— Puxa! Já é ser apressadinha...

— É que a luz tem botas de 300.000 léguas — lembrou Emília. — Imaginem o coitadinho do Pequeno Polegar, com suas botinhas de sete léguas, apostando corrida com a luz! Enquanto ele dava um passo, a luz dava sete...

— Sete o quê, Emília?

— Sete voltas em redor da Terra. Maior danada não pode existir.

 

 

 

 

 

 

 

 

V


O telescópio

 

 

Por longo tempo lá ficaram na varanda ouvindo as histórias do céu. Dona Benta parecia um Camilo Flammarion de saia. Esse Flammarion foi um sábio francês que escreveu livros lindos e explicativos. "Quem não entender o que esse homem conta", costumava dizer Dona Benta, "é melhor que desista de tudo. Seus livros são poemas de sabedoria, claríssimos como água."

Quem mais se interessou por aqueles estudos foi Pedrinho. Sonhou a noite inteira com astros e no dia seguinte pulou da cama com uma idéia na cabeça: construir um telescópio! "Que é, afinal de contas, um telescópio?", refletiu ele. "Um canudo com uns tantos vidros de aumento dentro. Esses vidros aumentam o tamanho dos astros, de modo que eles parecem ficar mais próximos — foi como disse vovó."

E logo depois do café da manhã tratou de construir um telescópio. Canudos havia no mato em quantidade — nas moitas de taquara; e vidros de aumento havia no binóculo da vovó. Pedrinho serrou os canudos necessários, de grossuras bem calculadas, de modo que uns se encaixassem nos outros, colocou lá dentro as lentes do binóculo de Dona Benta e fez uma armação de pau onde aquilo pudesse ser manobrado com facilidade, ora apontando para este lado, ora para aquele.

Enquanto ia construindo o telescópio, dava aos outros, reunidos em redor dele, amostras da sua ciência.

— O telescópio saiu da luneta astronômica inventada por aquele italiano antigo, o tal Galileu. Um danado! Inventou também o termômetro e mais coisas.

— Mas telescópio é invenção que até eu invento — disse Emília. — É só cortar canudos de taquara e grudar uns monóculos dentro...

Pedrinho ia respondendo sem interromper o serviço.

— Parece fácil, e é fácil hoje que a coisa já está sabida. Mas o mundo passou milhões de anos sem conhecer este meio tão simples de ver ao longe, até que Galileu o inventou. Também para tomar a temperatura das coisas nada mais simples do que fazer um termômetro — um pouco de mercúrio dentro dum tubinho de vidro, mas foi preciso que Galileu o inventasse. Tudo na vida são "ovos de Colombo".

Depois de pronto o telescópio, houve discussão quanto ao astro que veriam primeiro.




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